José Tavares e a revolução impossível

00:00

Este episódio, pelos 50 anos do fim da ditadura que procurou sufocar Portugal, foi pensado, escrito, gravado, narrado, sonorizado, musicado e misturado para ser ouvido, com auscultadores ou auriculares, todo de seguida. Podes ouvi-lo diretamente nesta página, ou em qualquer aplicação de podcasts. O que se segue abaixo é uma transcrição dessa peça em áudio, que, para além de conter menores imprecisões, rouba à conversa muita da sua riqueza.

TRANSCRIÇÃO

José Tavares: Então, vamos lá a isto. Eu fico assim um bocado… 

Nuno Viegas: Pois, eu sei. 

José Tavares: Estamos descontraídos.

Nuno Viegas: Estamos, João?

Lucas Grimault de Freitas: José, podemos só ter uma foto antes de começarmos?

José Tavares: É o que tu quiseres. 

Lucas Grimault de Freitas: Olhar para aqui, só para…

Narração – Nuno Viegas: Estamos num bairro operário do distrito de Beja. Agora, numa sala que é livros, dossiers, e uma secretária. Somos três para entrevistar, e, com algum desconforto, fotografar, um homem magro, de 65 anos, cabelo branco, óculos, e ar, subjetivamente, simpático. É dia de tomada de posse do novo governo, hoje. Vi a antecipação no noticiário, sem som, na tasca a que fomos comprar cerveja. Já almoçámos. José Tavares – é ele o fotografado – está sentado numa cadeira de palha, alumiado pela luz da única janela do escritório. Tem vista para as suas alfarrobas, na horta. É comum aqui ter quintal, pelo menos parece-me, na mão cheia de casas vizinhas.

José Tavares: Houve uma amiga minha que também, antes, fez uma pesquisa “Zé Tavares” e só viu uma fotografia minha numa conferência de ecologia e liberdade. 

Nuno Viegas: É verdade. É muito difícil. 

José Tavares: Porque eu sempre tentei… Estás a ver? 

Nuno Viegas: Mas era por… 

José Tavares: É para ter liberdade. Para ter liberdade.

Nuno Viegas: Tens mais liberdade sem….

José Tavares: Se a situação fica coiso, os gajos da direita ou outros gajos assim, não sabem nada de mim. 

Nuno Viegas: Não te conseguem encontrar.

José Tavares: E isso dá uma liberdade de ação.

Narração – Nuno Viegas: José Tavares levanta-se várias vezes ao longo das três horas que falamos. Quer mostrar-nos jornais, panfletos. Atira piadas. Sobre o antigo ditador, diz-nos que o problema foi termos tido um Sal Azar. Houvesse antes Sal Sorte. Vai buscar tabaco de enrolar, para ir fumando uns cigarros. Está nervoso. Perguntei-lhe de manhã se alguma vez tinha dado uma entrevista. Aceitou uma para o jornal Mapa há uns dias. Antes disso já recusou muitas. É, também, só, por natureza, irrequieto.

José Tavares: Onde é que eu estava no 25 de Abril?

Nuno Viegas: Típico.

José Tavares: Estava a ocupar um liceu.

Narração – Nuno Viegas: Pelo menos desde que tem 15 anos que não é de ficar no sítio.

José Tavares: Estava a ocupar um liceu. No 25 de Abril, eu de manhã entrei nas aulas, já sabia o que é que se estava a passar. Havia uma ausência do reitor e do vice-reitor. Aliás, as autoridades foram as únicas que cumpriram as ordens do MFA.

Arquivo – Comunicado do Movimento das Forças Armadas: As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma.

José Tavares: Ficaram em casa a aguardar os acontecimentos. Essa ausência nos liceus, nas fábricas, inclusive aqui no campo, permitiu a ação 

Nuno Viegas: Estavas em Leiria nesta altura?

José Tavares: Eu estava em Leiria. Estava no liceu de Leiria. Estava no 5.º ano, atual, 9.º, suponho eu. E, de manhã, começámos por invadir os pátios das raparigas. Colocámos um papel nas casas de banho: unissexo. Ocupámos a reitoria, a vice-reitoria, organizámos uma reunião geral de alunos, e foi assim o meu dia. Ainda o Marcelo [Caetano] não se tinha rendido. Depois tratava-se de fazer uma associação de estudantes, tratava-se de eleger uma comissão de gestão provisória até haver a possibilidade de haver eleições. Portanto tratava-se de pôr em prática a liberdade de reunião, de expressão, que já não era só uma teoria – era pô-la em prática, não é? 

Nuno Viegas: Podes dizer-me quem és?

José Tavares: Epá, eu, pronto, isso é difícil, apresentar-me… Mas eu sou o José Tavares, eu sou eu, sou um indivíduo normal… Não sei o que te diga.

Nuno Viegas: Vou ter de completar eu, o que, devo notar, não é propriamente fácil, porque online, pelo menos, há muito poucos dados biográficos.

José Tavares: Não tiveste acesso a esta enciclopédia anarquista ibérica? 

Nuno Viegas: Não, não tive. Parece-me um tomo.

José Tavares: Os gajos meteram-me aqui.

Nuno Viegas: Começo então por traduzir do castelhano uma das 100 mil entradas da Enciclopédia do Anarquismo Ibérico, de Miguel Íñiguez. José Tavares tem a maior biografia da página. Começa: “Nascido em 1959. Ativíssimo militante anarquista desde o fim de 1974, quando se juntou ao grupo estudantil Anarquistas Independentes, que, em 1976, se converteu no grupo libertário Puig Antich, aderindo à Federação Anarquista da Região Portuguesa”.

José Tavares: O Salvador Puig Antich foi um jovem que pertenceu aos MIL, Movimento Ibérico de Libertação. O indivíduo fez um assalto a um banco onde morre um polícia. Ele é preso. Nesse tempo, existia a pena de morte em Espanha, e ele é garrotado, em 74, março de 74. 

Narração – Nuno Viegas: “Ele era jovem, nós eramos jovens.” Portanto adotam o nome. E, depois, José Tavares vai a todas. Escreve para o principal jornal anarquista em Portugal, a Batalha. Funda um espaço de cultura libertária em Leiria. Entra no Grupo Ecológico e Anti-Militarista da Associação Académica de Coimbra. Não vai muito às aulas, mas publica revistas.

José Tavares: Editava nessa altura a Ecologia ou Morte

Narração – Nuno Viegas: Várias revistas. 

José Tavares: Isto foi o Coice de Mula. Foi uma iniciativa minha. 

Narração – Nuno Viegas: Pinta.

José Tavares: Eu andei numa escola de belas artes em Inglaterra. 

Narração – Nuno Viegas: Faz lá um filme. 

José Tavares: A Memória Subversiva

Narração – Nuno Viegas: É candidato a candidato nas presidenciais de 1991, como performance. 

José Tavares: “A bem da nação um candidato com tesão”, “Sem tesão…”

Nuno Viegas: “… não há evolução.” 

Narração – Nuno Viegas: Lança uma livraria e uma editora, a Crise Luxuosa. Organiza acampamentos. 

José Tavares: E fizemos o primeiro fumício em Portugal. “Viva a pedra, abaixa os calhaus.”

Narração – Nuno Viegas: Está nas organizações de trabalhadores.

José Tavares: Tentámos, portanto, criar sindicatos de ofícios vários. 

Nuno Viegas: Estás num em Coimbra, não é?

José Tavares: Nomeadamente em Coimbra. Estás informado. 

Narração – Nuno Viegas: Na luta contra a central nuclear de Ferrel.

José Tavares: Que foi possível parar, porque ainda havia uma comunidade viva em Ferrel. 

Narração – Nuno Viegas: Nesta entrevista, falamos de controlo e organização popular, da ação direta na toma de uma fábrica, de uma casa, de uma escola: da luta pelas próprias mãos, sem legalismos, para construir hoje o mundo que se ambiciona ter amanhã. Esta é a história de José Tavares, como ele a conta. Eu sou o Nuno Viegas. Seja toda a gente bem vinda ao Fumaça. Vamos começar pela revolução.

José Tavares: A revolução, a revolução… 

Nuno Viegas: Ou o pós-golpe, como quiseres enquadrar. 

José Tavares: Uma agitação, uma agitação popular que acompanhou o golpe. A revolução… Hoje fala-se muito de uma revolução, mas a gente não sabe o que é uma revolução. Talvez o que interessa aqui saber é qual é a revolução necessária, não é? Qual é a revolução que nós necessitamos hoje? Pode ser um momento em que tu institucionalizas uma revolta, a revolução. Eu era partidário de uma revolução social, o que implicava um câmbio global da sociedade. Não uma revolução política, que muda um governo por outro. A revolução pode ser também um momento em que mudas de constituição. Tomba uma constituição, aparece outra. Mas, numa perspetiva revolucionária, a revolução social é o fim do governo, do Estado, e, digamos assim, a gestão direta da sociedade: órgãos de gestão direta, que permita às pessoas o mais perto possível delas de resolver a coisa pública. 

Nuno Viegas: Logo ali no 1 de maio de 74, quando vês os líderes partidários a discursar.

Arquivo – Mário Soares: Quero também saudar, em nome do Partido Socialista, todas as outras forças e partidos democráticos que estão aqui presentes.

Nuno Viegas: Percebes que não vai ser essa a revolução?

José Tavares: Nessa altura, não percebi inteiramente bem. Eu estava muito animado com tudo o que se estava a passar. Eu costumo contar uma história a que eu assisti logo a seguir ao 25 de Abril, que foi um rapaz que foi preso pela polícia, talvez porque estava a tentar roubar roupa numa loja de roupas, numa avenida principal, e as pessoas viram aquilo, viram o rapaz ser levado para a esquadra num carro da polícia, e agarrarem o rapaz pelo cabelo, e não sei o quê. E as pessoas estavam tão sensíveis com esse tipo de ação, que começaram a discutir: “Mas o que é que vocês estão a fazer ao rapaz?”, “Ele roubou”, “Mas talvez ele precise da roupa”, e tal. Portanto, a desculpar o próprio roubo. Eles levaram o rapaz para a esquadra. As pessoas ali na rua, que não se conheciam de lado nenhum, começaram a discutir este problema, organizaram-se, e fomos para a esquadra. E, de frente da esquadra, começou-se a gritar: “Libertem o rapaz! Libertem o rapaz!” E ninguém sabia o nome dele. Portanto, isto é um exemplo do que aconteceu. As pessoas que não se conheciam começavam a falar umas com as outras. E esta espontaneidade é que, para mim, é o 25 de Abril.

Nuno Viegas: É uma orgânica popular de organização.

José Tavares: Toda a gente era contra a exploração. Mesmo um pequeno patrão também era contra a exploração.

Nuno Viegas: Mas tu depois reenquadras o que aconteceu no 1 de Maio? Porque hoje ouço-te falar também daquilo com outro tom. Sem aquela excitação. 

José Tavares: Com outro tom. Porque depois, a seguir, os exilados começaram a chegar a Portugal. O Mário Soares, o Álvaro Cunhal.

Arquivo – Álvaro Cunhal: Estamos certos de que esta unidade se revelará na luta, na ação das massas populares.

José Tavares: E muitos outros começaram a retornar ao país. E começou, portanto, a haver aquilo que se chama os representantes do povo, não é? 

Arquivo – Álvaro Cunhal: Dentro em breve será constituido um governo provisório.

José Tavares: Depois começou a formar-se os partidos políticos, que até aí eram proibidos, e que agora podiam existir. E nesse sentido começou a aparecer muito partido, não é? Chegou a haver, sei lá, muitas organizações marxistas, leninistas e comunistas. E isso já não tinha… Já ultrapassava, digamos assim… Tentava-se controlar esse individualidade, tentava-se controlar essa espontaneidade popular. Tentavam canalizá-la para os seus programas e para o seu partido. Preocupavam-se em controlar as cooperativas, as fábricas ocupadas, as comissões de moradores, sei lá. E era a sua preocupação, não é? E, a meu ver, isso foi um erro porque se devia ter, durante muito mais tempo, estado ao lado da espontaneidade popular que surgiu. 

Nuno Viegas: Mas queria-te perguntar, precisamente – porque é que nós chegamos ali ao final de 75 e há 800 cooperativas industriais ocupadas, há 600 cooperativas agrícolas, um quarto de todo o território agrícola do país está ocupado, há 35 mil casas ocupadas para a habitação –, por que é que se escolhia naquela altura ocupar uma fábrica, um latifúndio, uma casa? 

José Tavares: Como já te disse, ao princípio, a maior parte dos casos era a ausência do próprio patrão. Portanto, no início com o 25 de Abril, as pessoas, os patrões, sobretudo a classe dominante que tinha estado ligada ao regime, teve medo, não é? Foram apanhados muitos na fronteira, a sair de Portugal, com muito dinheiro, joias e ouro dentro dos carros. Portanto, essa ausência vai permitir… “Olha, o patrão”… Como o caso que eu conheci na Vieira de Leiria, nas fábricas da Tomé Feteira, uma fábrica de limas, que já tinham estado em luta antes do 25 de Abril e o patrão fugiu para a Suíça. E essa ausência… “O patrão fugiu para a Suíça. Como é que a gente vai fazer?” Falaram com os elementos do escritório, o pessoal trabalhador que trabalhava no escritório, e começaram a gerir a fábrica por eles próprios. Portanto, depois, a partir daí, começa a haver essa direção, esse rumo, mesmo se o patrão permanecia. Começou-se a tentar fazer a autogestão, a autogestionar a própria produção. Porque há aqui uma grande vontade de justiça, de igualdade, de fraternidade, do fim da exploração, fim da opressão. Portanto, estes valores vão dar esse ânimo. Mas, evidentemente, se eu estou a morar numa barraca, e se em frente tenho um prédio que está já construído, ou em vias de construção, eu dirijo-me para lá. Porque a minha situação, neste momento, nas circunstâncias históricas da altura, portanto, permitia essa ação. E foi bem feita. 

Nuno Viegas: Como é que te marca, ou como é que influi na tua formação, o contacto com ver as pessoas a descobrir o que é a liberdade, com ver as pessoas a perceber como é que se faz a autogestão numa cooperativa, como é que nos organizamos, como é que resolvemos conflitos sem uma estrutura hierárquica? 

José Tavares: Aí havia muitos de ditos sabichões, não é? Havia aqueles, os dirigentes, não é? Que tinham lido os livros todos, ou os livros essenciais, e tentavam, portanto, dar a sua direção. Eu estava também a ganhar a consciência da liberdade e a viver juntamente com todo o mundo. Só comecei… Como comecei muito ativo dentro da escola, e comecei a ver, à minha volta… Eu lembro-me que já no final houve uma greve da TAP que o PC não apoiou essa greve dos trabalhadores.

Arquivo – Comissão de Trabalhadores da TAP: Os trabalhadores da TAP informam todo o povo do país de que são os reacionários que se servem da luta dos trabalhadores, e não os trabalhadores a atuar juntamente com a reação.

José Tavares: Tinha lá o ministro de Trabalho, era do PCP. O Álvaro Cunhal era ministro sem pasta. E isso fez-me um bocado refletir. Por que é que umas greves são boas, por que é que umas greves são más? E lembro-me que estava a ler um livro de Marx, com alguma dificuldade, porque era jovem e tinha que reler, voltar atrás, ao princípio, enfim… E lembro-me de haver uma nota de rodapé a um indivíduo que eu não sabia quem era, o Mikhail Bakunin. 

Narração – Nuno Viegas: O russo Mikhail Bakunin foi o principal teórico anarquista do século XIX, contemporâneo de um dos principais teóricos comunistas, Karl Marx. E foi com Bakunin que José Tavares despertou para a Ideia. Eu não vou propor uma definição de anarquia. Diria para seguirmos antes a prática de José Tavares do anarquismo.

José Tavares: Depois começou a aparecer também um jornal que era o Combate. Um jornal publicado em Lisboa por uma corrente comunista de concelhos, marxistas críticos, que davam a palavra aos trabalhadores. Iam às ocupas, iam às fábricas em autogestão, às cooperativas, e não faziam teoria nenhuma política. Davam-lhes só, simplesmente, a palavra. Eu, então, comecei a conhecer alguns velhos militantes do movimento anarquista dos anos 20, e membros da antiga Confederação Geral do Trabalho, e membros da antiga Federação Anarquista da Região Portuguesa, e comecei a conhecê-los, não é? E comecei, então, com eles, a tentar ajudar, a contribuir, para o ressurgimento do movimento anarquista aqui em Portugal, e até anarcossindicalista. 

Nuno Viegas: Quando descreves a sequência da ação popular, da tendência para a autogestão das fábricas, da constituição de comissões de trabalhadores internas, não se trata de uma vaga anarquista fora do movimento anárquico?

José Tavares: De certo modo, era. De certo modo, as ocupações espontâneas, a autogestão, têm muito a ver com o anarquismo. Outra coisa é haver uma força anarquista a influir dentro desses eventos. Alguns amigos meus de esquerda diziam-me: “Ó Zé” – quando eu me tornei anarquista, diziam-me os gajos mais simpáticos – “Isso é histórico, a história já ultrapassou isso, não fazes nada com isso.” 

Nuno Viegas: Falavas há pouco das greves na TAP, no mesmo período tem uma greve… O PCP também não apoia a greve nos CTT, por exemplo.

Arquivo – Jornalista: Em relação à vossa greve, acha que houve uma grande falta de compreensão em relação às razões da vossa luta?

Arquivo – Trabalhadora dos CTT: Eu acho que sim, acho que fomos incompreendidos, em virtude de, realmente, as nossas aspirações serem, por parte do público e por parte dos governantes, realmente bem acolhidas. Porque realmente tínhamos sido muito desprezados monetariamente.

Narração – Nuno Viegas: Quem trabalha – hoje como há um século –, junta-se em sindicatos. Os sindicatos, juntam-se em confederações. Agora temos a CGTP e a UGT. Na I República, havia só a Confederação Geral do Trabalho. E na CGT crescia o movimento anarquista. A Batalha, para que escreveu José Tavares depois do 25 de Abril, começou como jornal dessa confederação de sindicatos. A ditadura militar proibiu a CGT em 1927. E depois, já com Sal Azar no poder:

José Tavares: Depois, como vocês sabem, os sindicatos foram corporativizados 

Narração – Nuno Viegas: Durante a ditadura, os sindicatos nacionais estavam proibidos de fazer greve. Tinham de renunciar à luta de classes, em nome da colaboração corporativa, pelo bem nacional.

José Tavares: E o PCP, nos anos 70, e talvez até um pouco antes, infiltra os sindicatos corporativos, que são sindicatos verticais, não são horizontais. Quando se chega ao 25 de Abril, embora haja o sindicato dos bancários, que era muito forte, eles não deixaram de ser verticais. Portanto, há aqui uma substituição dentro da corporação. O PCP infiltra-os. A seguir ao 25 de Abril, esse sindicalismo é um sindicalismo amorfo, que não necessita de membros vivos, ativos, mas sim passivos, tal como no antigo regime. São sindicatos verticais. O PCP usa-os dentro da estratégia na Assembleia da República, uma estratégia política. Os sindicatos estão ao serviço da ação política na assembleia. E na rua, portanto, são obedientes, tal como tinham sido antes. Portanto, nós não chegámos a um sindicalismo vivo, que não se limita à fábrica, que vai aos bairros, que vai a toda a vida social, como tinha acontecido nos anos 20. Era um sindicalismo que se pretendia vivo, que era regido por assembleias de sócios que decidiam toda a ação, e não por uma comissão diretiva e por uns dirigentes que vão de lá de cima cá para baixo, não é? De cima para baixo, não de baixo para cima. E então, nesse sentido, as reivindicações que eram necessárias, o aumento do salário… O salário mínimo era ridículo, e acho que até nem existia, não é? Os trabalhadores não tinham qualquer espécie de direitos. Portanto, todas as reivindicações que apareceram depois de 25 de Abril eram positivas no sentido em que vinham trazer-nos os direitos, trazer aumentos, aumentos salariais que eram importantes. Mas o sindicalismo antigo, dos anos 20, não se ficava por aí. Fazia isso, mas pretendia uma revolução social. Portanto, o objetivo último seria sempre uma nova sociedade. Este propósito de uma nova sociedade, uma sociedade que não obedeceria nem ao capital, nem ao próprio Estado, tinha já morrido. O próprio antifascismo, que foi criado, por razões evidentes, pelas ditaduras fascistas e totalitárias, é uma redução da ambição de um projeto social. Ficamos reduzidos à luta antifascista. E perdemos um horizonte mais vasto. E é preciso ter atenção com isso. É preciso ser antifascista, ok, mas perceber e não perder, a meu ver, uma perspetiva que já se perdeu de uma nova sociedade.

Nuno Viegas: A Ideia.

José Tavares: De uma ideia mais, mais vasta. É o que eu penso.

Narração – Nuno Viegas: Lembro-me de ler Memórias de um militante anarcossindicalista, a autobiografia de Emídio Santana, que militou desde os anos 20, na Confederação Geral do Trabalho, até à sua morte, em 1988. Foi crítico de um sindicalismo que não era capaz de exigir o fim do trabalho assalariado, por exemplo. Escreveu, já em democracia: “Um dos lapsos evidentes, de que ambas as centrais sindicais padecem, é de não terem uma definição de objetivos sociais e revolucionários dos seus métodos de luta e organizativos e apenas se identificarem na retórica simplista de uma vaga luta de classes e de um caminho para o socialismo, fechado num casulo dogmático. O sindicato, na dogmática do marxismo-leninismo, não ultrapassa o imediato económico.”

José Tavares: Isso aí é um retrocesso. Nós temos que adaptar as lutas contra isso, não é? Temos que ir adaptando à medida que as coisas vão acontecendo. Se eu agora estou obrigado a ir para dentro de uma fábrica e a ser assalariado, tenho que criar formas de resistência dentro desse âmbito, dentro dessa realidade. Mas isso não obsta a que se vá um pouco mais longe. Eu acho que não é possível sair disto sem lutarmos. Nós aqui, em Portugal, contra a nossa classe dominante. Na Rússia, os russos lutarem contra a classe dominante dos russos, a classe dominante do governo e a classe dominante russa. A França, a mesma coisa. E convertermos esta coisa… Ser mais objetivo, não é? E fazer uma guerra social contra as classes dominantes dos nossos respetivos países.

Eu não quero, de forma nenhuma, negar o espírito de justiça, de igualdade, de liberdade que surgiu com o 25 de Abril. Não. Mas quero muito separar isso dos projetos políticos dos partidos. Porque foi isso que eu senti, foi isso que eu vivi, era isso que me preocupava e que eu era contra. Mas eu não vou perseguir partido nenhum, não os vou proibir. Para mim, havia uma grande coisa: o povo unido funciona sem partidos.

Nuno Viegas: E como é que os partidos tentavam depois tomar controle das ações do povo?

José Tavares: Epá, isso é uma coisa curiosa, que posso dar um exemplo. Uma vez participei numa assembleia de trabalhadores como observador. E os partidos, então, estavam na assembleia – fossem trabalhadores, fossem moradores – e o que é que procuravam? Procuravam, como é lógico, pôr em prática, fazer propor, fazer aceitar as suas propostas políticas. Como muitas vezes não conseguiam, e como se entrava em disputas na assembleia entre fações rivais, aborreciam muito os trabalhadores. Quando chegava a hora de jantar, os trabalhadores iam jantar. Eles aproveitavam a ausência e decidiam tudo. No outro dia: “Já viste isto? Foi naquela assembleia ontem, foi decidido isto”, “Eu estive lá e não decidi nada.” Pois não, tinha sido decidido quando os trabalhadores… Porque aborreciam-se, cansavam-se. E depois de cansar a assembleia, ficava lá eles só e decidiam. Muitas vezes a assembleia era assim manipulada. 

Narração – Nuno Viegas: José Tavares chama a isto contradições. Assaca-lhes as culpas de não termos tendido, após os anos que considerámos o PREC [Processo Revolucionário em Curso], para a auto-organização popular.

José Tavares: O seu controlo. Procurar gestionar diretamente a coisa pública, aquilo que nos diz respeito. E tentar criar formas mais diretas, mais participativas de exercer, portanto, essa coisa pública. Esta deve ser a busca. No 25 de Abril, houve e não houve essa possibilidade. Houve porque havia uma janela aberta para essa possibilidade. Foi um momento crucial de 74 a 75. Ao mesmo tempo, não houve porque havia muitas contradições. Porque o 25 de Abril não foi feito para isso. O 25 de Abril foi feito para a liberdade de união, liberdade de expressão, se quiserem, para aproximarmo-nos da democracia europeia, das democracias como a gente as conhece. Era esse o objetivo que estava no programa dos capitães, era essa a sua vontade. As contradições para exercer essa tal participação direta na coisa pública, criar órgãos novos de gestão que nos permitam exercer o controlo da sociedade nesses termos, ao mesmo tempo era impossível. Porque não havia essa consciência, essa direção, esse programa, que tem que existir antes de uma revolução. Tem que existir essa vontade, tem que existir essa ideia, não é?

No 25 de Abril há uma janela aberta para isso, há um momento crucial de 74 a 75, sobretudo, para fazer, para ir nessa direção. Ao mesmo tempo, ela é impossível, porque nós estamos aqui com forças políticas que não estão para aí viradas, não é isso que eles querem. Por outro lado, a sociedade portuguesa estava muito dividida, há um analfabetismo muito grande, o país está dividido entre Norte e Sul, controlado ainda por caciques, como era antes do 25. Há um grande papel da Igreja ainda nessa altura, da Igreja Católica. Há muitas contradições e não é por acaso que se tornou impossível, digamos assim, rumar para aí. Porque tu não podes rumar para um sítio quando não decidiste rumar para aí, quando as circunstâncias históricas e as condições não foram criadas para isso. É um avanço sair de uma ditadura para uma democracia. Eu não regressava atrás. Portanto, estamos… Calma. Sair de uma monarquia para uma república também parece que pode ser um passo em frente em termos sociais, e culturais, e de mentalidade. A democracia e a liberdade de expressão e de reunião são essenciais. Temos que as defender. O que posso dizer mais? Disso não há dúvida, estás a ver?

Eu próprio, a certa altura, não estava interessado em democracia nenhuma, como nós dizíamos, burguesa. Depois comecei a perspetivar que não é uma mudança de governo que muda as coisas. Eu comecei a pensar mesmo que esta civilização tem que tombar, portanto: já não é uma questão de governo, é uma questão de civilização. Pensar de maneira diferente, sentir diferente o mundo, olhar para o mundo de outra maneira. Portanto, todos os valores serem alterados. Eu penso que talvez seja isso. Nós tivemos já na história registada para aí 30 e tal civilizações que existiram e desapareceram. E talvez que esta civilização… Tenha que desaparecer também. E isso é uma ambição. É uma ambição. Mas, enfim, as coisas também podem acabar mal. Que é o que me parece que… 

Nuno Viegas: Votas na democracia burguesa? 

José Tavares: Eu sou abstencionista ativo. Sou um abstencionista ativo. 

Nuno Viegas: Desde sempre? Ou de vez em quando convencem-te? 

José Tavares: Desde sempre. Pode ser que… Não. Sou um abstencionista ativo.

Nuno Viegas: Estavas a ponderar se ias votar ou não? Pareceu-me que estavas a ponderar. 

José Tavares: Sei lá. Pode ser que…. Nunca se sabe, mas não estou a fazer conta disso. Votar é abdicar. Chamam-te de quatro em quatro anos para pores um voto. Depois ficas calado. Agora só nos próximos quatro anos é que vais ser chamado outra vez. Não tens nenhum controlo por a pessoa em que votas. Se ela não cumpre o que prometeu, não tens nenhum controlo sobre isso. Não o podes demitir. 

Nuno Viegas: Não há mandato revogável.

José Tavares: Não há nenhuma possibilidade. Portanto, o eleitor é chamado a pôr um boletim de voto e depois, olha, cala-te. 

Nuno Viegas: Eu tenho uma citação relativamente longa tua.

José Tavares: Ai é?

Nuno Viegas: Para abrir a minha pergunta seguinte. Em 1997…. 

José Tavares: Elá.

Nuno Viegas: Escrevias na revista Utopia, uma publicação anarquista que ajudaste a fundar.

José Tavares: Ya, ya, ya.

Nuno Viegas: Para explicar porque é que falham as revoluções, dizias que havia quem as tornasse num credo constante, e afirmavas, citando-te: “Para os sacerdotes do credo, o recrutamento a todo o preço de militantes e combatentes eventuais impõe-se. […] Uma revolução assim concebida, seja ela libertária ou outra coisa qualquer, suscita não só o acordo e o entusiasmo dos doentes patológicos, como a de uma juventude inquieta, por vezes revoltada contra o que se faz e o que se é. Porém, é da natureza das coisas, da natureza dos Homens, que uma revolução deste teor seja traída. Porque não consideram serem as revoluções o que elas são objetivamente: acidentes intermitentes de uma evolução contrariada.” 

José Tavares: É a minha melhor síntese sobre o que é uma revolução. 

Nuno Viegas: Adorei esta frase. Por outro lado, escreves tu: “O recrutamento através de slogans sumários, da sedução mística e hagiográfica é eficaz na organização política de seitas ou de uma sociedade imposta, ditatorial, mas nunca bem vinda.” Acrescentas que se se procura apenas construir uma revolução para “um escritório de recrutamento, é melhor abandoná-la aos partidos, onde ela é um instrumento normal. Os rebeldes não têm nenhum interesse em encorajar as vocações a atracarem nas mãos dos condutores de massas.” O que eu te perguntava é se a política de manifestações, grafittis, janelas partidas, ruas cheias, protesto e confronto constante gera apenas um mecanismo de mobilização autoperpetuante?

José Tavares: Olha que eu vou deixar isso ao teu critério. Depois de me leres essa passagem, que nos anos 90 deve ter sido o período mais fértil meu teórico, vou deixar ao teu critério. O que eu acho é que muitas destas ações que agora se estão a passar na atualidade fazem-me lembrar, às vezes, teatro, atores de teatro, a fazer happenings.

Nuno Viegas: Quando tu vês ativistas pelo clima a atirar tinta a um líder partidário, por exemplo, ou a um ministro…

Arquivo – Duarte Cordeiro: Ah, desculpe.

Arquivo – Ativista da Climáximo 1: Sem futuro, não há paz.

Arquivo – Ativista da Climáximo 2: Sem futuro, não há paz.

Arquivo – Ativista da Climáximo 1: Não tem legitimidade social para falar sobre a crise climática.

Nuno Viegas: Vês performance, vês teatro ou vês um mecanismo de luta? 

José Tavares: Vejo mais, desculpa que diga, vejo mais o teatro, para ser franco. Eu não quero desprezar, de maneira nenhuma, a evolução dos militantes, quer dizer, dos ativistas. Cada um tem a sua evolução e eles, se calhar, estão na sua. Portanto, começam por atirar a tinta. Mas isso vai sempre mais, a meu ver, vai mais no sentido do espetáculo, da valorização do político. Eu penso que devemos deixar os políticos a falar sozinhos. Eu não sou muito a favor de manifestações que se dirigem à Assembleia da República. Os polícias dirigem-se à Assembleia da República, os trabalhadores dirigem-se… Vamos todos até lá à frente. Talvez fosse melhor ir para outro local. Talvez fosse melhor deixar os políticos a falar sozinhos. Mas vocês viram que aquelas latas de tinta correram mal, não é? O gajo deve ter ganho muitos votos quando lhe lançaram a tinta.

Arquivo – Luís Montenegro: Já faltava assim um episódio mais animado.

Arquivo – Trausente: Espere aí que tenho aqui lenços de papel.

Arquivo – Luís Montenegro: Sem problema. Eu estou preparado para tudo. Não há crise.

José Tavares: O happening vem dos anos 60. Toda essa coisa que se faz agora fez-se muito nos anos 60. E o pessoal está…. Não sei se eles têm consciência dessas ações nos anos 60, não é? Não sei se eles se apercebem, estás a ver, o quanto estão ligados a esse tipo de ação nos anos 60. De todos os modos, volto a repetir, nesse sentido… Agora, não me parece que…. Eles pretendem chamar a atenção e criar um movimento a partir dessas ações. Eu percebo-os. Sou solidário com as jovens quando elas são presas, e as raparigas despidas dentro da esquadra. É evidente que isso é uma canalhice e eu sou solidário com essas pessoas. Não pode ser de outra maneira. Mas tu encontras a resposta aí nesse próprio texto. 

Nuno Viegas: Achas que é contraproducente o recurso à ação direta quando há uma rejeição social generalizada dessas ações? 

José Tavares: Será que isso é uma ação direta? Atirar a tinta para cima de um político? 

Nuno Viegas: Explica-me porquê. 

José Tavares: Será? Pergunto-me eu, estás a ver? 

Nuno Viegas: Mas problematiza. 

José Tavares: Pergunto eu. Ação direta é uma luta sem intermediários. É uma luta taco-a-taco com o inimigo. E uma das coisas que eu vejo muitas vezes nesse tipo de ação, nomeadamente na ação não-violenta, é que deixam de ter inimigo. Não há inimigo propriamente dito. E eu continuo a pensar que há um inimigo: o poder, a classe exploradora, etc. Embora, a gente sabe que o poder está em cada um de nós. Podemos exercer poder dentro de casa face às mulheres, podemos estar a exercer poder com os amigos, etc, etc. O poder está estabelecido em todo o lado. Mas o inimigo não… Ok, esse poder existe, esse autoritarismo existe, mas se nós conseguimos centrar a coisa no capital, no capitalismo, no modo de produção capitalista, como inimigo. No Estado, no Governo, como o agente político central. Se nós conseguíssemos focalizar-nos nesses dois objetivos – o capitalismo e o poder político –, talvez avançássemos um pouco mais, não é? 

Nuno Viegas: O que é que eram as lutas específicas em que tiveste, ou os atos específicos em que participaste, que, para ti, se enquadram na noção da ação direta?

José Tavares: Exemplificar isso. Bom, ainda há bocado te falei no assalto ao posto da polícia em que estive envolvido em 79. Considero isso uma ação direta, na medida em que estávamos a prescindir dos traficantes de armas, e dos fornecedores de armas, e íamos diretamente, sem intermediário, buscar o que nos interessava. Mas eu lembro-me de termos uma discussão antes de assaltar o posto da polícia, entre as pessoas que participaram nessa ação, se éramos anarquistas no momento em que entrávamos no posto da polícia. E a conclusão foi que nós não somos anarquistas quando estamos a fazer essa ação. É uma ação militar de ocupação. Impõe-se durante cinco minutos, dez minutos. Não é uma violência contínua como é que o Estado exerce. É só de cinco minutos. Eu não sou violento sempre, e todos os dias. Uma pessoa que pratica um ato violento pode passar muitos anos sem o exercer. 

Nuno Viegas: Podes explicar-me como é que era a FIGA e como é que usavam a violência? 

José Tavares: A FIGA não era uma organização de luta armada. A FIGA era uma organização anarquista, de síntese.

Nuno Viegas: A Frente Ibérica… 

José Tavares: Federação Ibérica de Grupos Anarquistas. Surgiu no final de 78, início de 79. Foi formalizada no início de 79, numa conferência ibérica. Teve a sua importância. E durante seis meses fez-se muitas ações. Ações de expropriação económica para financiar alguns projetos cuja finalidade é o autogoverno e a gestão direta. E emprega…. Eu sei que os não violentos também são, tentam ser, não violentos porque também tentam ser coerentes com os meios e os fins. Eu também quero uma sociedade não violenta uma sociedade… Eu sou pacifista. Não sou não violento, mas sou um tipo pacífico. Também desejo a paz. Mas quando nós tentamos construir e responder à violência diária que é eu estar subordinado a um salário, eu estar subordinado a ir, por exemplo, para uma fábrica ou para o trabalho, quando eu estou sujeito a uma violência, a uma agressividade de informação e de propaganda – melhor dizendo – de propaganda constante na rádio, na televisão, e sou agredido constantemente por essa propaganda, quando eu tenho que pagar uma renda que não consigo pagar da casa, quando eu tenho que fazer um esforço imenso para viver, ou melhor, sobreviver, é uma ação violenta, incrível, quotidiana e sistemática. Quando eu tento, e quando eventualmente exerço, uma violência que tu podes chamar revolucionária ou outra coisa qualquer, que eu chamo defensiva, eu exerço-a como uma resposta e como uma defesa. Eu continuo a pensar que devemos ter direitos a defender-nos.

Eu, nessa altura, até trabalhava, estudava e trabalhava, e saía do emprego, fazia umas ações especiais, e depois voltava ao trabalho. Nunca usei o dinheiro para viver, para pagar a minha vida. A minha vida era paga pelo meu salário. Imagina, tu podes entrar numa expropriação, contribuis para uma certa quantidade de dinheiro, depois dispersas. Depois, para dispersar, apanhas um comboio, vais para comprar o bilhete: “Olha, não tens dinheiro que chegue.” O dinheiro era empregue para tudo menos para nós próprios. Porque ninguém vivia propriamente disso, não é? Não somos… Nesse sentido, não somos bandidos. As expropriações económicas são essenciais para podermos financiar a atividade, a atividade em todos os sentidos. 

Nuno Viegas: Que usavam para pagar depois… Ou seja, para que é que usavam depois o dinheiro que saía de assaltarem os bancos? 

José Tavares: Em Espanha, servia para pagar os alugueres das sedes. Serviam para editar livros, serviam para editar jornais, serviam para fazer cartazes, organizar comícios, sei lá, toda essa panóplia de coisas. Eu não andei na luta armada, fazia aquilo a que se pode chamar ações especiais. Não é a operação especial do outro, mas ações especiais. Mas, como já disse, para mim, a luta armada só pode haver uma: o povo em armas. À medida que isso se tornou mais complexo…. A violência hoje não se pode exercer contra um aparelho de Estado que te é 200 vezes superior em termos de técnica e de poderio de violência, não é? E eu não sei até que ponto é que uma ação violenta hoje em dia possa ter um bom efeito, não é? Isso torna-se um bocado missão impossível.

Eu vou-te contar uma história, pronto, não sei se isso tem a ver, mas talvez tenha a ver. Eu já há muitos anos, quando andei nisso, participei numa ação, uma ação ilegal. Essa ação foi depois, no outro dia, anunciada nos jornais. Eu estava tranquilamente num restaurante, num pequeno restaurante de trabalhadores, popular, a almoçar. E os trabalhadores que tinham vindo almoçar estavam todos contentes com essa ação. Animados. “Epá, bestial, isto foi muito…” E eu, que estava na mesa ao lado, a ouvir isso, e em vez de ficar a pensar “Epá, isto foi porreiro, os gajos até estão de acordo”, fiquei a pensar… Porque eles partiram muito animados para o trabalho, depois de comer. E a mim… Fiquei com a impressão de que lhes estava a dar animo para irem trabalhar. 

Nuno Viegas: Não gostaste? 

José Tavares: A violência, às vezes, torna-se um espetáculo. E, nesse sentido, a ação deve valer por si mesma. Eu, por exemplo, uma crítica que eu faço: eu andava na clandestinidade quando as FP25 anunciaram que iam existir… 

Arquivo – Militante das Forças Populares 25 de Abril: O nosso trabalho não é um trabalho de infiltração em qualquer organização política, mas sim um trabalho de consciencializar as pessoas, de formá-las politica e militarmente para criar uma situação insurrecional em Portugal.

Narração – Nuno Viegas: As Forças Populares 25 de Abril tentaram radicalizar a luta armada para a revolução socialista, com assaltos a bancos, assassinatos políticos, e atentados à bomba. Mataram 13 pessoas.

José Tavares: A sua primeira ação, das FP25, nos anos 80, no final dos anos 80, foi colocar uns petardos dentro dos caixotes do lixo, sobretudo – foi ao domingo, uma coisa assim – nos campos de futebol. Nos caixotes do lixo em frente ao campo de futebol. Fizeram explodir panfletos, comunicados, a dizer “Nós somos as FP25. Vamos aparecer”. Portanto, fizeram publicidade a uma marca. O que estava em causa ali era uma sigla. Começaram sempre… É como se fosse a Coca-Cola, uma ocasião para lançar uma marca. E eu sou muito contra esse tipo de ação. A ação deve já ser um exemplo, justificar já por si, deve já encerrar o programa. Não tem que se assinar, nem tem que se reivindicar tudo.

Nuno Viegas: Tu achas que é legítimo violar a lei em democracia para prosseguir os nossos fins? 

José Tavares: Ah, sem dúvida nenhuma. Uma ação direta tem que ser essencialmente ilegal. Não deve ter em conta a legalidade, por muito que isso possa ter como consequência. 

Nuno Viegas: Por que é que achas que podes tu violar os direitos de outra pessoa à propriedade, numa ocupação, ao livre movimento, no corte de uma estrada, para construir o mundo que achas que deve existir?

José Tavares: Isso… Eu não tenho problema com a propriedade. Nós, para combatermos o capitalismo, devemos desrespeitar completamente a propriedade, que é a base do sistema capitalista. 

Nuno Viegas: Mas a minha questão não é só com o direito à propriedade, é na noção de: se construímos um sistema democrático em que estabelecemos uma série de direitos que são codificados na lei, como as proteções que garantimos a cada um de nós, por que é que achas que é legítimo, por eu ter uma determinada perspetiva sobre como devemos alterar este mundo, ultrapassar essas balizas que são criadas para defender os direitos de outras pessoas na persecução dessa minha perspetiva do que deve ser o mundo?

José Tavares: Pois, as pessoas submetem-se e são apáticas em relação ao assalariamento. Quer dizer, eu preciso de um salário para viver, para pagar a minha casa, para pagar a universidade, para pagar os estudos ao meu filho, e parece que tudo vale. Esse argumentário serve para manter, digamos assim, muita merda pela nossa própria opção. E deve-se tentar, deve-se tentar, penso eu, ser mais audacioso.

Nuno Viegas: A minha inquietação aqui é se a opção por “Eu discordo do funcionamento desta fábrica, vou ocupá-la” ou a opção por “Eu acho que este congresso nacional do CDS em 74 é reacionário e, por isso, vou cercar o Palácio de Cristal e impedir que eles façam isto”, se não nos empurra para um clima social em que os fascistas vão fazer a mesma coisa, e descambamos só para um espaço onde é impossível coexistirmos porque ambos os lados estão a tentar construir um espaço que veem como muito melhor do que a sociedade moderada e conciliadora que temos agora, e que cede aos espaços em que está. A minha inquietação é esta, é: se o recurso a estes mecanismos de luta não nos leva para um espaço que é só pior. 

José Tavares: Sim. Tens razão. 

Nuno Viegas: Não sei se tenho. É só uma preocupação.

José Tavares: Sim, nesse sentido podes ter razão. Mas há uma relação de forças, não é? É preciso constituir a força, as relações de força, e ao constituir uma força ela vai contra a outra. Não há volta a dar. Aquilo que interessa são as finalidades, os objetivos, e, mais do que isso, os meios para atingir esses objetivos, que têm que estar no mínimo o mais coerentes possíveis com os fins. Mas isso é muito difícil. Nós entramos muitas vezes em contradições, mas é um esforço. 

Nuno Viegas: Podias dizer-me quem morreu por ação da FIGA?

José Tavares: Morreu um indivíduo que se chamava Agustin Valiente Martín. Eles tinham assaltado numa sexta-feira, em Almeria, no sul de Espanha, tinham assaltado um banco. Mas o resultado dessa expropriação económica não foi assim grande coisa. De maneira que, na segunda-feira, na mesma cidade, assaltaram outro banco. Recuaram para a casa que tinham alugado e, cinco minutos depois, estava cercada pela polícia. E o Agustin é morto.

Narração – Nuno Viegas: Agustin, militante da FIGA, morreu ao tentar fugir para outro edifício.

José Tavares: Nessa ação, apreenderam aos indivíduos as armas que tinham sido expropriadas, recuperadas, e aí fizeram a ligação com Portugal. 

Nuno Viegas: Tinham sido recuperadas por ti?

José Tavares: Por mim, não. 

Nuno Viegas: Também por ti? 

José Tavares: Eu não sou o superman. 

Nuno Viegas: Participaste na recuperação? 

José Tavares: Participei nessa recuperação, juntamente com outros. Pronto. E foi isso que me levou à condenação. 

Nuno Viegas: Tu foste preso em 80? 

José Tavares: Fui preso em 80. Foi isso. Não. 81. 81. 

Narração – Nuno Viegas: Tinha 21, 22 anos. Lembra-se de 83 dias em solitária. Uns 12 meses fechado no Estabelecimento Prisional de Lisboa. E de acabar amnistiado, em conjunto com outras pessoas que tinham recorrido à violência política em democracia. A biografia na enciclopédia anarquista ibérica enche uma coluna inteira.

José Tavares: Mesmo assim.

Nuno Viegas: Faltam coisas, não é? 

José Tavares: Faltam coisas, mas sobretudo essa coisa da FIGA. Depois houve um amigo meu, companheiro, que disse “Então, Zé, não veio aí a história da FIGA”. Não. Ele não tinha apanhado essa parte.

Nuno Viegas: E tu não quiseste acrescentar. 

José Tavares: E eu não quis acrescentar.

Nuno Viegas José Tavares continua a escrever para jornais. Tem uma livraria ambulante, porque não sabe de nenhuma permanente até Lagos, no distrito de Faro. Ajudou a abrir em Lisboa, faz uns anos, a Biblioteca e Observatório dos Estragos da Sociedade Globalizada. Podes ir ao espaço anarquista da Disgraça para a consultar. Trabalha numa cooperativa de sementes em França. Vai reformar-se este ano. Faz a distribuição de produtos de cooperativas no Alentejo. Nisso creio que espera continuar. Tem um cão lindo chamado Lud, em honra ao grupo de fiadores e tecelãs ingleses que sabotava equipamento industrial no século XIX. Não consentiu que o castrassem, quando o veterinário sugeriu. Diz que pensou nele próprio.

Nuno Viegas: Pergunta de fecho?

José Tavares: Faz lá a pergunta para a gente despachar isto.

Nuno Viegas: Para te deixar em paz.

José Tavares: Já estou em pulgas para que isto acabe. 

Bernardo Afonso: Eu também, mas é só porque estou cansado.

Nuno Viegas: Em 2004, na revista Utopia, tu escrevias: “Estou convencido que se há de produzir um despertar e que ele virá da base do anarquismo, da pequena associação. Essa base já podia ser motivo para se convocar um encontro de centros, ateneus, publicações ou associações que aqui existem, mesmo que seja em pequeno número.” E o que eu te perguntava era: como é que se constrói hoje uma revolução social de bases? 

José Tavares: Como é que se constrói uma resistência à opressão de que somos vítimas, e à exploração, quer do ser humano, quer da natureza e do planeta? Em 2004, eu parece que estava otimista. Em 2024, não estou assim tanto. As coisas, em vez de terem evoluído nesse sentido, retrocederam. Está cada vez mais difícil. Mas eu não diria que esperança, não é? Mas hoje eu penso que é cada vez mais difícil construir uma resistência. E, ao mesmo tempo, ela nunca foi tão necessária. Uma revolução social era o que nós necessitávamos mais. Mas ela nunca foi tão impossível de realizar. 

Nuno Viegas: Achas que os teus amigos em 74 tinham razão realmente e isto já tinha passado à história? 

José Tavares: Quem? O anarquismo? Não, porque o anarquismo ao que parece…. Há uma data de conceitos… Toda a gente fala no antiautoritarismo. Isso é uma ideia anarquista. A própria gestão direta, uma ideia anarquista. Portanto, a ação direta, que só os anarquistas é que falavam, agora já muito mais gente fala. Portanto, algumas coisas que as pessoas adotaram, e que foram adotadas, e institucionalizadas. Nesse sentido, o anarquismo, a ideia anarquista ainda existe.

Eu sou um partidário da anarquia: uma sociedade de homens e mulheres que vivem em paz com a própria natureza, numa relação equilibrada com a natureza, sem necessitarem de uma autoridade que se eleve sobre elas. E isto continua a ser para mim, penso eu, uma bússola, uma meta a atingir. Nesse sentido, eu sou anarquista, melhor dito, um partidário da anarquia. 

Narração – Nuno Viegas: Esta entrevista foi preparada por mim, Nuno Viegas, e o guião foi editado pela Margarida David Cardoso e pelo Bernardo Afonso, que também tratou do som. A Maria Almeida editou a montagem desta peça. Cortámos muita coisa da conversa. O Lucas Grimault de Freitas fez a fotografia. A Joana Batista, a edição de imagem. O Ricardo Esteves Ribeiro emprestou-me uma pilha enorme de livros sobre anarquismo. E fazem ainda parte da equipa Fumaça: Fred Rocha e Luís Marquez. Surgem sons da SIC, TVI e RTP. Nós podemos tirar três semanas para ler sobre os movimentos populares durante o PREC, a história do anarquismo na Primeira República, política de confrontação, luta armada, o uso da violência e ação direta, porque 40% do orçamento do Fumaça é pago pelas pequenas doações mensais de quem acredita que se pode fazer jornalismo numa redação horizontal, controlada pelos trabalhadores, sem fins lucrativos, com o interesse público como bússola editorial, a investigação como método, o contexto como objetivo. Se queres que o Fumaça continue vai a fumuca.pt/contribuir e dá 5 euros por mês. Não nos podemos fiar em bolsas. Sem as doações do público, o jornalismo independente acaba. Apoia a informação. Junta-te à Comunidade Fumaça em fumaca.pt/contribuir. Até já. Bom 25 de Abril.

Subscreve a newsletter

Escrutinamos sistemas de opressão e desigualdades e temos muito que partilhar contigo.