Síria

Sham sobre a Síria antes e depois da guerra, pela voz de quem a viveu

Esta semana o episódio é diferente. Falámos sobre a Síria com a Sham, nome fictício de uma estudante Síria a viver em Portugal.

A 16 de Fevereiro de 2011, um rapaz de 14 anos pegou numa lata de tinta preta, olhou para uma parede da sua escola, riu-se e pintou-a. Os amigos, mais velhos, que pressionaram para o que tivesse feito, riram também e orgulharam-se da pequena partida. No dia seguintem, na escola, não se falava de outra coisa.

Tinham pintado a parede onde agora estava escrito: “É a tua vez, doutor”. O “doutor” era Bashar al-Assad, líder do regime Sírio que é também médico oftalmologista, e sugeria a queda do ditador como se tinha visto na Túnisia com Ben Ali, e pouco depois no Egito com a queda de Mubarak.

Logo depois da travessura os rapazes foram presos pelo regime. Foram presos e torturados. Arrancaram-lhes as unhas, levaram choques eléctricos, e foram espancados. E um deles, o Hamza Ali al-Khateeb, foi mesmo torturado até à morte.

De seguida começaram os protestos, e começou uma revolução que desencadeou uma das mais violentas guerras civis que hoje se mostra em escassos minutos de telejornal.

Sham esteve nesses protestos, que tão bem descreve no episódio, e falá-nos da Síria antes de tudo isto acontecer. Conversamos sobre a Síria antes da guerra, sobre como começaram os protestos, sobre a reação do regime de Bashar al-Assad, a crise de refugiados, o Daesh, e o que se passa hoje em Damasco, onde a família de Sham ainda vive.

Ouve aqui este episódio e diz-nos o que achas. Excepcionalmente este episódio é em inglês porque, apesar da Sham falar um pouco de português, sente-se mais confortável em inglês. Mas podes ler a tradução aqui:

Maria – “Para um jovem Majd Ibrahim, a chegar à maioridade, era cada vez mais aparente que que o futuro da sua nação estaria no Ocidente. Como outros rapazes de classe média em Homs, ele vestia roupas ocidentais, ouvia música ocidental, via vídeos ocidentais, mas Majd tinha também uma janela única para o mundo lá fora. O seu pai, um engenheiro eletrotécnico, trabalhava num dos melhores hóteis de Homs, o Safir, e Majd – fascinado pelo hotel, com o seu constante movimento de hóspedes – arranjava qualquer desculpa para o visitar e saber mais sobre o seu dia. Para Majd, o Safir era também um lugar de afirmação, uma lembrança de que independentemente das pequenas mudanças que as políticas Sírias pudessem vir a tomar, ele sempre poderia viver naquele mundo moderno e secular em que nasceu.”

Isto é de “Fractured Lands: How the Arab World Came Apart”, publicado em 2016, pelo Scott Anderson, para a New York Times Magazine. Descreve a vida na Síria antes da guerra de 2011.

Sham – 2011… Antes da guerra, as pessoas tinham uma vida normal. Nós íamos à escola, tínhamos lojas, tínhamos restaurantes, uma vida normal, boa energia, as pessoas aprendiam línguas. Tudo era muito fácil de aceder e era permitido fazer tudo, exceto falar ou tocar em política. Não podias partilhar o que ia na tua mente, não podias falar de nada relacionado com o governo ou com instituições [públicas]. Havia este tipo de dinheiro do governo, mas não te era permitido falar sobre isso. Enquanto sociedade, somos uma sociedade composta por diferentes religiões, cristianismo, islão, yazidis, composta por diferentes raças, temos árabes e curdos e, portanto, é um país diverso. Isto foi antes de 2011, e nessa altura eu era nova e vivia em Damasco.

Ricardo – Andavas na escola?

Sham – Sim, em 2011 acabei a escola secundária.

Ricardo – Tinhas carro?

Sham – Em 2011 podia conduzir e tinha o meu próprio carro, a nossa casa, a minha família, costumávamos fazer viagens para fora do país, portanto não tínhamos este grau de pobreza, mas tínhamos esta coisa, em que só quem integrava o governo é que podia ser dono do seu próprio negócio.

Ricardo – No mesmo “Fractured Lands: How the Arab World Came Apart”, Scott Anderson escreve: “”Eu nunca me lembro de ouvir o meu pai a dizer nada sobre o regime, bom ou mau,” disse Majd Ibrahim. “E eu nunca me lembro de nenhum dos meus familiares ou vizinhos fazerem-no também. Em relação ao estado, o máximo que alguém poderia criticar seria talvez o polícia de trânsito corrupto da esquina. Não se falava sobre esses assuntos com ninguém.”
É disto que falas?

Sham – Sim, sim. Todos tínhamos esta coisa que sempre se dizia, que era ‘as paredes têm ouvidos’, portanto não nos era permitido falar de nada sobre o governo, mesmo dentro de casa, nunca criticávamos, a minha família nunca votou. É um direito nosso, mas nunca votámos. Quando se votava, votava-se para que ele [Bashar al-Assad] se mantivesse no poder. Não havia duas possibilidades de escolha, existia uma única escolha. Não tínhamos partidos, tínhamos um partido. É um regime ditatorial.

Maria – No dia das eleições, tinham que votar num candidato em particular e num partido em particular.

Sham – Nós nem sequer lhe chamamos dia de eleições. Chamamos-lhe…

Ricardo – Referendo.

Sham – Sim [risos].

Ricardo – No último referendo, em 2007, Bashar al-Assad alcançou, o quê, 99 por cento?

Sham – Noventa e… Não, desta vez [o número] foi mais baixo, 92, 93 por cento. Estavam a tentar torná-lo mais realista. Acho que foi esta a percentagem.

Maria – E, mesmo tendo em conta que as pessoas não falavam sobre política nem sobre o regime, como é que os sírios se sentiam em relação ao regime de Assad?

Sham – Ninguém gostava, na realidade, ninguém tinha esta consciência crítica, mas ninguém gostava da situação e era como ‘de pai para filho’. A minha família criou-me para não criticar e o que aconteceu nos anos 80, quando o regime de Hafez al-Assad [pai de Bashar al-Assad] queimou toda a cidade de Hama, as pessoas passaram, até, a ter medo de falar sobre o que se tinha passado. Foi durante esse período, a cidade esteve a arder durante três dias e morreram pessoas, mas não de forma normal, foi um massacre. Foram famílias que desapareceram ali.

Ricardo – Em Março de 2011, um grupo de 15 crianças entre as idades de 10 e 14 anos de idade, pintaram as parede de Daraa e por causa disto foram detidas, espancadas, violadas e torturadas. Descreve os graffitis e o que estava lá escrito e fala sobre a importância deste episódio em particular no que aconteceu depois.

Sham – Em Março de 2011, as crianças escreveram, por causa da influência da revolução egípcia “Vai-te embora, doutor. Não te queremos aqui.” e eles estavam com idades entre 11 e 13. Pelo senso comum, eles são crianças, e mesmo pelo corpo, também são crianças. Um deles era muito famoso, o Hamza Ali al-Khateeb. Todas as crianças foram torturadas e o Hamza Ali al-Khateeb foi torturado até à morte. Aí, as pessoas começaram a protestar, não pediram para ele [Bashar al-Assad] ir embora. Pediram mudança. As pessoas continuaram a protestar, e em Damasco houve um protesto em que as pessoas foram para a rua e não sabiam o que dizer. Só diziam “Mudança, mudança, mudança.”. Eles chegaram a esse ponto. Nessa altura nem tinham chegado ao ponto de dizer “Não queremos.”. Depois, tudo mudou. Porque quando eles chegaram ao poder mais acima, porque as pessoas que torturaram essas crianças era o primo do Presidente. Eles disseram: “Ou voltam para as as vossas casas, ou vamos violar as vossas mulheres.”

Maria – O primo do Bashar al-Assad disse isso às pessoas que estavam a protestar?

Sham – Sim, e ele torturou as crianças também. No primeiro discurso, eu lembro-me em 2011, estava de volta da escola, a correr para casa porque queria ouvir o que se passava: “O que ele vai dizer?”. Porque as pessoas antes da guerra pensavam que ele seria melhor que o seu pai. E eles diziam que ele era bom mas que as pessoas à volta dele não eram. Então nós estávamos à espera de que ele dissesse algo como “Perdoem estas pessoas, nós vamos mudar.” ou algo assim. Em vez disso, ele saiu e disse “Vocês são germes. As pessoas que estão a protestar são germes, terroristas.”. E isto foi, acho eu, o ato mais estúpido que aconteceu nessa altura.

Ricardo – E como é que as pessoas protestavam nessa altura?

Sham – De forma pacífica. Mesmo pacífica. O tipo de consciência que as pessoas tinham em 2011 e 2012 era mesmo impressionante. As pessoas seguravam flores nas ruas, faziam grafittis, protestavam de várias formas, todas pacíficas. Quando olho para o 25 de Abril aqui em Portugal, e para as flores vermelhas… nós tínhamos todas as cores. E mesmo quando veio o exército, as pessoas saíram para as ruas com as flores em riste. Uma dessas pessoas era Ghiath Matar. Ele morreu na prisão. Era um ícone do protesto pacífico. Foi pacífico até ao seu último suspiro. E nessa pequena cidade, as pessoas protestaram de flores em punho. O exército não lhes ia fazer nada, e portanto mudaram as pessoas do exército.

Maria – E tu participavas nesses protestos?

Sham – Em 2012 a 25 de Fevereiro, foi o meu primeiro protesto. Estava com medo. Antes disso, estava a ajudar a distribuir comida a pessoas da minha área, entre outras coisas, mas nunca tinha protestado a esse nível. Até que perdi um dos meus amigos.

Maria – O que aconteceu ao teu amigo?

Sham – O meu amigo estava em Homs. Na altura Damasco estava normal e sem a quantidade de protestos que estavam a acontecer em Homs. Ele estava numa das pequenas áreas em Homs e estava a filmar para passar aquelas imagens para o resto do mundo, porque na altura o regime não permitia a entrada de jornalistas internacionais e por isso as pessoas começaram a ter câmeras e a fazer vídeos, e a serem muito profissionais nisto. O meu amigo estava a segurar a camera e a filmar o que estava a acontecer em Homs e depois uma bomba caiu e ele foi ajudar uma pessoa e depois outra bomba caiu e… Não foi possível levá-los para o hospital porque ia ser uma matança e não um hospital. Ele não conseguiu ajuda e por isso morreu.

Ricardo – No dia 2 de Agosto de 2011, Ziad Majed, investigador do Líbano e da Síria, professor assistente de Estudos do Médio Oriente na Universidade Americana de Paris, disse ao Democracy Now:
“Em 1982, houve uma revolta em Hama, uma revolta popular, mas que contou ativamente com a participação da Irmandade Muçulmana. E a resposta do regime Sírio foi a destruição brutal da parte antiga da cidade com fortes bombardeamentos e um massacre contra a população civil que levou à morte de mais de 20.000 pessoas em poucos dias. Para além disso, nos anos 80, houve uma onda de terror, assassinatos, capturas, esquadrões da morte que atacavam pessoas. A contagem esteve perto das 40.000 mortes. Por isso, Hama é simbolicamente um lugar de tristeza, de uma memória terrível.”
Isto foi em 1982 quando a Síria era governada por Hafez al-Assad, pai de Bashar al-Assad, o atual presidente. Como é que o regime respondeu aos protestos em 2011?

Sham – É assim vocês ouviram o que aconteceu nos anos 80 mas, por exemplo, a minha família dizia que ia ser cada vez pior. A forma como eles responderam foi com tiros. Não foi como uma bomba de gás lacrimejante, isso era uma coisa que gostávamos que houvesse na Síria, gostávamos de estar num protesto em que alguém atirasse uma bomba de gás lacrimejante. Mas não, foram tiros. Mesmo que sejas capturado vais para uma prisão. Agora, talvez, passados 6 anos, há pessoas que estão presas sem sequer terem sido acusadas de nada. Muitas pessoas foram torturadas até à morte. Apenas há alguns dias atrás houve um artigo da Amnistia Internacional que dizia que 13.000 pessoas num dos setores de uma prisão na Síria, em Saydnaya. Isto é tortura, não é normal.

Maria – Estás a falar do relatório da Amnistia Internacional sobre Saydnaya, uma prisão secreta na Síria, onde mais de 10.000 pessoas, a maioria cidadãos foram torturados e enforcados pelo regime de Assad.
“Desde 2011, mais de 10.000 pessoas desapareceram e foram detidas em prisões e centros de detenção controlados pelo governo Sírio. Muitos foram levados para Saydnaya, uma prisão conhecida e assustadora onde os detidos são encarcerados em condições horrendas, e são sistematicamente torturados. Milhares morreram enquanto detidos. Inacessível a jornalistas e grupos de monitorização independentes a prisão é um buraco negro de onde não existem imagens recentes.”
É isto o que acontece aos dissidentes políticos na Síria?

Sham – É muito pior. E não é só em Saydnaya, é em muitos outros sítios. Lembra-me o que aconteceu aos Judeus na Segunda Guerra Mundial nos campos de concentração na Alemanha. Eu acho até que é o que está a acontecer é muito pior que isso. E as pessoas que estão na prisão dizem que a pior coisa não é a tortura em si mas ouvires as outras pessoas a serem torturadas. É uma destruição psicológica para a pessoa.

Ricardo – Estavas a falar de um amigo que foi morto nos protestos. Onde estão os teus amigos e a tua família hoje?

Sham – Tenho amigos presos, sem sequer serem acusados, e outros que eu não sei onde estão mas sei que foram levados pelas milícias do regime. E depois há as pessoas que estão fora do país, na Turquia, no Líbano, no Egito, a tentarem viver, e há os refugiados na Europa. Por isso estamos todos espalhados pelo continente.

Ricardo – Ainda falas com eles?

Sham – Sim. Mas alguns deles eu evito falar porque não encontro as palavras certas para lhes dizer. Por exemplo, eu tenho um amigo que foi capturado pelo regime durante 2 anos sem acusação e quando ele saiu puseram-no no exército. E mesmo que ele seja contra o que se está a passar… ele agora está no exército e não tem saída. Eu evito falar com ele porque sinto que é injusto eu viver uma vida normal e ele não.

Ricardo – Porque é que deixaste a Síria?

Sham – Porque um dos meus amigos foi preso e eu tive medo. Se fugires estás melhor do que nas mãos deles. É melhor estares morto do que nas mãos deles porque não sabes o que te pode acontecer. E este foi o primeiro passo da minha longa viagem.

Maria – Podes descrever a tua viagem desde a Síria até onde estás hoje?

Sham – Eu fui sai da Síria para o Egito, para tentar acabar os meus estudos. Eu estava à espera para ver se seria possível ou não, para ver o que aconteceria. Depois fui para a Turquia. E entretanto consegui uma bolsa para vir estudar para Portugal.

Ricardo – Tu és uma refugiada?

Sham – Aqui? Não. Eu não tenho o estatuto de refugiada mas acho que não faz diferença porque somos todos humanos.

Ricardo – Em 2016, as Nações Unidas identificaram 13.5 milhões de Sírios que requeriram assistência humanitária, entre os quais estão mais de 6 milhões deslocados internamente na Síria. Em Janeiro de 2017 o relatório registou 4.8 milhões de refugiados fora da Síria. Para onde foram estes refugiados?

Sham – Para fora as pessoas vão para, pelo menos antes de 2013, para o Líbano, Egito, Turquia, Iraque e Jordânia. Depois houve aquele que já não poderam entrar na Jordânia e estão agora na Turquia e no Líbano. Os piores campos de refugiados onde eu estive foram no Líbano. Não há nada, ou praticamente nada, é só um edifício, tendas, edifício. Não estão a ser cuidados pelo governo, pelas agências, por nada. E as pessoas nestes campos não estão só a sofrer pelas condições de vida mas também pela segurança. Há muitos casamentos com raparigas com menos de 18 anos porque os pais têm medo que sejam violadas e por isso arranjam desculpas para casar as filhas. Internamente, há um tipo de refugiados que vão e voltam, vão e voltam para as suas casas, tentam ficar em casa. Muitas pessoas foram mortas porque voltaram às suas casas e estavam a zonas perigosas.

Maria – Isso foi internamente? Eles saiam da sua casa para uma casa segura e depois voltavam?

Sham – Sim. Pessoas que estavam, por exemplo, nos subúrbios de Damasco, iam para Damasco, depois voltavam para as suas casas porque a guerra estava mais calma no dia seguinte mas, infelizmente, voltavam para trás e eram mortos. Não só internamente, mas também externamente e que voltavam para trás, porque diziam que era melhor estar lá, mas eram mortos.

Maria – Recentemente, estiveste no Líbano, como estavas a falar há pouco, para ajudar uma família de refugiados. Podes falar sobre isso?

Sham – Estive no Líbano duas vezes. A primeira viagem foi para fazer um workshop num dos campos de refugiados. A segunda foi para ajudar uma das família. É um pai que é refugiado na Bélgica e ele estava à espera da reunião da família, com a sua mulher e os 3 filhos, mas o que se passou enquanto ele estava à espera é que uma bomba veio e matou a mãe. De certeza que as crianças viram a mãe enquanto ela estava a morrer e estavam demasiado traumatizados. Não havia ninguém para trazer as crianças do Líbano para a Bélgica, porque refugiados que estão na Europa não são permitidos de entrar no Líbano por razões políticas entre as autoridades Libanesas e as autoridades sírias. Então, como eu tenho um estatuto de aluna, eu fui ao Líbano, levei as crianças as crianças que não tinham mãe até à Bélgica. Foi demasiado intenso, emocionalmente, porque tive este sentimento de que estava no lugar da mãe deles, mas logicamente, não devia ser muito fácil. Estás a fazer uma reunião da família, e enquanto estão à espera a mãe morreu. Porquê? Porque é que estou a ocupar o seu lugar? Foi bom ver o pai reunido com os seus filhos mas foi um sentimento de uma certa tristeza: “Onde está a mãe?”.

Ricardo – A Turquia acolhe 2,8 milhões de refugiados sírios, mas do que qualquer outro país do mundo. O Líbano acolhe cerca de 1 milhão de refugiados sírios, 20 por cento da população total. A Jordânia acolhe cerca de 650,000 refugiados sírios, 10 por cento da população total. No Iraque, onde 3,1 milhões de pessoas estão internamente refugiadas, acolhe 228,000 refugiados sírios. Na Europa, somos mais de 700 milhões de pessoas, e onde cerca de 1 milhões de refugiados sírios pediram asilo, acolhemos 150,000 refugiados sírios. O que é que devia fazer a União Europeia sobre isto e o que é que já fez até agora?

Sham – É ótimo que as pessoas estejam a acolher, é fantástico. Estamos a falar ao nível da sociedade, não é ao nível político. Estão a acolher, estão a fazer muitos esforços. Mas se compararmos com a grandeza da catástrofe que está a acontecer, não é nada que faça a diferença. E isto é o que devíamos esperar da Europa. Ninguém quer ser um refugiado. As pessoas querem voltar às suas terras natal. E isto é também o que devíamos tentar conquistar. Reconsiderar a melhor maneira de acolher refugiados, programas de integração, partir o “vidro” entre as pessoas. Mas ao mesmo tempo temos de trabalhar em direção às ações políticas. Como é que vamos ajudar os sírios a acabar com o problema, como é que nos vamos mexer. A sociedade internacional devia ter-se mexido desde 2011, mas ninguém se mexeu, e isto é o que, agora, está a levar a esta catástrofe que está a acontecer em todo o mundo. Este extremismo que vem de todo o lado, mesmo ao nível político. O que está a acontecer nos Estados Unidos, à direita e à esquerda; ou, a outro nível, estas pessoas extremistas como o ISIS. Isto não é uma coisa de uma noite, é uma coisa que vem acontecido e que leva a este tipo de pensamento.

Maria – Estavas a falar dos Estados Unidos, e a 27 de Janeiro, o Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América, assinou uma Ordem Executiva que ele próprio chamou de Muslim Ban que indefinidamente suspende a entrada de refugiados sírios nos EUA, assim como refugiados de qualquer outro país por 120 dias. Chris Murphy, um senador dos EUA de Connecticut tweetou: “Nós bombardeamos o teu país, criando um pesadelo humanitário, depois trancamo-vos lá dentro. Isto é um filme de terror, não uma política externa.”. O que achas sobre isto?

Sham – É pior que um filme de terror, em primeiro lugar. É a realidade. Ele disse exatamente o que se está a passar. Estão a bombardear o país, mas não apenas os Estados Unidos. É por todo o lado. O que se está a passar agora na Síria é mais um problema internacional entre a Rússia, Irão, Arábia Saudita, Turquia, os países à volta, EUA, sobre o petróleo nesse sítio, sobre a divisão da área, sobre o que quer o Irão, sobre a influência da Arábia Saudita, sobre a Turquia e o parte norte da Síria. Isto é a realidade. E sobre a Muslim Ban, eu acho que o Donald Trump está a dizer algo que já existia nas políticas dos EUA mas que estava escondido numa maneira mais bonita. Mas agora é mais forte, e estão a dar direito aos racistas a serem racistas.

Ricardo – Como é que chegámos ao ponto em que agora falamos sobre um conflito religioso em vez de um conflito político?

Sham – Porque o regime do Assad esteve a trabalhar neste ponto desde o início da revolução. Mesmo na revolução, podemos dizer que todos os grupos religiosos – muçulmanos, cristãos, com elementos diferentes – todas as religiões que existem na Síria estavam a por a culpa nisso. Por exemplo, desde o primeiro dia, o regime estava a dizer que ia salvar as minorias, “nós estamos aqui para proteger as minorias”, esses altruístas. Depois, passado algum tempo, isto começou a ser mais focado nos alauitas, sunitas, xiitas, yazidis, drusos (desculpem, nós temos muitos, posso mencionar todos, mas…). Foi como se esta aldeia, por exemplo, tivesse grupos religiosos diferentes comparados com outra aldeia, então mandassem esta aldeia lutar em seu nome contra a outra aldeia. E isto começou a ser como se os sunitas estão a matar, ou os xiitas tivessem a matar, ou como se os cristãos não estivessem a fazer nada, mesmo existindo figuras grandes na revolução síria que são de diferentes religiões. Estou a falar Bassel Shehadeh, que tem um passado cristão em Damasco e Ahmer… Mesmo politicamente há muitas diferenças. Então ele (Bashar al-Assad) estava a tentar isto desde o primeiro dia, e eu acho que agora, em 2017, infelizmente, ele está mais ou menos a ter sucesso nisto (não totalmente).

Maria – Como é que o daesh acabou por ocupar uma posição central na oposição ao regime?

Sham – Ok, chegámos a outro ponto. Devemos começar em como o daesh começou?

Ricardo – Sim.

Sham – Por um lado tens os extremistas, que são o daesh, que está a fazer coisas em nome do islão mas, quando vês as ações, não têm qualquer relação com o islão. Por exemplo, estão a pegar em reféns e a matá-los: isto é proibido no islão. Como é que isto aconteceu: quando o governo perdeu o controlo e queria perder o controlo da parte norte da Síria, este grupo veio e começou a ter o poder do dinheiro e o poder das armas e agora são muito parecidos com o regime. São a mesma cara mas numa diferente face da moeda. São a mesma coisa, parecidos com diferente forma. O ISIS no norte da Síria diz que é contra o regime, mas quando vais à terra mesmo, há áreas em que o ISIS está ao lado do regime e eles não se bombardeiam uns aos outros, bombardeiam as forças da oposição da Síria, por exemplo representadas pelo Exército Livre da Síria. É assim que eu vejo a realidade. O ISIS diz que veio para a Síria para salvar os sírios. Então porque é que eles estão a bombardear outras áreas? Porque é que eles não estão a bombardear os que dizem ser contra?

Ricardo – Abu Faris, um antigo membro do Exército Livre da Síria que está agora na Turquia disse ao The Guardian: “O povo sírio começou a voltar-se contra o o Exército Livre da Síria. Quando o ISIS começou as decapitações, as pessoas começaram a dizer mal dos que se tinham revoltado contra o regime. Eles pensaram que nós seríamos a razão pela qual estes radicais vieram para o nosso país. Mas nós queríamos liberdade, não o ISIS.”

Sham: Com certeza. Com certeza. O povo queria liberdade. O ISIS é o mesmo que o regime. As pessoas não querem outra cópia do regime. As pessoas estão à procura de um sítio livre para viver. Eu tive muitas discussões com as pessoas dos campos (de refugiados), que estão nos campos. Eles queriam viver nos campos porque estão perto da Síria. Eles não querem sair dali porque estão a ver o futuro da Síria e não querem ser substituído por outro pessoa. As pessoas querem só ter um país, querem voltar. Mesmo que não tenham casas, querem ver aquilo por que eles pediram em 2011 a acontecer. Não querem uma cópia do regime.

Maria – Hoje em dia, com o daesh a tornar-se a maior força de oposição ao regime, vês o regime do Bashar al-Assad como o mal menor?

Sham – Eu vejo-os iguais. Sem qualquer diferença.

Ricardo – A tua família ainda está em Damasco.

Sham – Sim.

Ricardo – Podes descrever a crise de eletricidade e água por que a Síria está a passar, e como é viver lá hoje em dia?

Sham – Damasco, se nós virmos toda a situação da Síria, o centro de Damasco, é considerado o melhor sítio para viver em Síria, porque ainda tem 4 horas de eletricidade.

Ricardo – Quatro horas de eletricidade.

Sham – Sim, 4 horas o dia todo, em algumas áreas. Alguma outras não tem. Também tem havido um problema com água. Há mais ou menos 1 mês que não há água. As pessoas têm de comprar água. Os serviços de saúdes são horríveis.

Ricardo – Há quanto tempo não há água em Damasco.

Sham – Agora, há 1 mês. Há 1 mês. Porque houve 2 bombardeamentos entre o Exército Livre da Síria nos subúrbios de Damasco onde é a fonte de água, e o regime, e o regime bombardeou a fonte de água.

Ricardo – E isto é a melhor cidade para viver na Síria.

Sham – Agora as pessoas adaptaram-se à guerra. Mas não podes, por exemplo, comparar os subúrbios de Damasco onde o Exército Livre da Síria ou o grupo de oposição existe com Damasco, porque do outro lado, ainda há pessoas a viver sem água e sem eletricidade, sem cuidados de saúde, sem escolas, sem universidade, nada. Tudo é caro, e estão a viver lá desde 2 e meio, 3 anos, com acesso limitado a comida, preços muito altos. Não é morte, é pós-morte. Estão a viver porque aconteceu que estivessem a viver. Estão todo o dia a sofrer bombardeamentos de aviões e as pessoas pensam que quem vive em Damasco estão mais seguras porque só estão a sofrer com bombas pequenas. É assim.

Maria – Abu Faris, um antigo membro do Exército Livre da Síria que citámos antes disse ao The Guardian “A revolução síria acabou – está terminada. Tudo o que deixou foi uma história para contar aos nossos filhos: uma história em que milhares de sírios enfrentaram a tirania e ditadura de Assad com temendo sacrifício. O que esperas que aconteça?

Sham – O que eu espero que aconteça, ou o que vejo a acontecer. O que eu espero é poder voltar para a Síria, o Assad ir embora, nós termos um país livre. Eu ainda acredito que talvez a revolução não esteja tão forte como foi em 2011, mas existem ainda pessoas que acreditam nisso. Eu espero que exista esperança e que a nossa esperança se torne realidade. O que eu vejo, é que a Síria é mais internacional do que… É um negócio internacional, entre os russos, os iranianos e os americanos, e os turcos. Eu espero que isto termine.

Ricardo – Valeu a pena?

Sham – Sim.

Ricardo – Porquê?

Sham – Nós tínhamos uma boa vida, mas não tínhamos liberdade para falar. E eu não quero que os meus filhos vivam num sítio onde são limitados e onde não são livres para falar. Não quero que os meus filhos vivam num sítio onde o regime de Assad está. Valeu apena porque há pessoas que pagaram com a sua alma para que os nossos objetivos acontecessem e acho que ter um país livre compensa as perdas.

Créditos da foto: AFP 2016 / Ameer Alhalbi

Título atualizado a 6 de outubro de 2023, para substituir a citação “Os dissidentes sírios são tratados como os Judeus na Segunda Guerra Mundial” pela indicação do tema da entrevista.

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