Televisão Digital Terrestre

Sérgio Denicoli: “Quem perdeu foram as pessoas mais pobres do país”

“Vem aí a televisão digital, com melhor som e imagem, sem contratos nem mensalidades”: ouvia-se num dos anúncios da campanha oficial de implementação da Televisão Digital Terrestre (TDT) em Portugal. A promessa deixava antecipar coisas boas mas, no final, éramos confrontados com um aviso que vinha em tom de ameaça: “Prepare-se já para a TDT, senão…”. Senão, era o vazio. A estática.

Muitos prepararam-se e, ainda assim, acabaram a ver e ouvir o formigueiro cinzento nos ecrãs. O “apagão analógico” deu-se a 26 de abril de 2012 e deixou milhares às escuras, nas chamadas “zonas de sombra”. Para os que estavam “ao sol”, sobrou um serviço pior do que haviam sido obrigados a deixar. As expectativas saíam frustradas. Quem recebia o sinal em condições não encontrava grande motivo para tirar partido da TDT. Ao contrário do planeado, a oferta televisiva digital não oferecia nenhum incentivo à sua adoção. O quinto canal não chegou – as duas candidaturas apresentadas a concurso foram chumbadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), e o canal em alta definição, que iria juntar RTP, TVI e SIC, não saiu do papel.

A televisão digital terrestre portuguesa era, à altura do seu lançamento, a mais farroupilha da União Europeia. Apenas quatro canais. A oferta não aumentou com a passagem do analógico para o digital. Quando o sinal analógico foi definitivamente desligado em Portugal, Espanha, aqui mesmo ao lado, oferecia 31 canais através da sua TDT.

À data, a RTPN (atual RTP3) e a RTP Memória, canais públicos, continuavam a não ser disponibilizados de forma livre. Para se lhes ter acesso, continuava a ser necessário pagar por um serviço de televisão. Isso só mudou no final de 2016.

Todo o processo aparenta ter sido conduzido de forma a não funcionar. É o que pensa Sérgio Denicoli, jornalista e investigador do Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. Na sua tese de doutoramento, dedicada à implementação da TDT em Portugal, aponta o dedo à relação “simbiótica” entre Estado e Portugal Telecom (PT), que garantiu “o monopólio de distribuição dos sinais digitais terrestres e também da venda de equipamentos para as zonas de sombra”.

O resultado? Uma televisão de livre acesso fraca, com uma oferta reduzida e uma cobertura insuficiente. Perdeu-se uma oportunidade e favoreceu-se os do costume – os operadores com oferta televisiva paga. Hoje, a TDT é para os pobres, é para quem não tem como pagar um serviço de televisão por subscrição. A Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) revelou, no seu Inquérito aos Meios de Acesso ao Sinal de TV em 2017, que apenas 17,8% dos lares em Portugal acediam exclusivamente a conteúdos televisivos através da televisão digital terrestre. Por outro lado, 66,7% fazia-o através de pacotes pagos. O perfil demográfico traçado pelo estudo não mente: “Os respondentes que se encontram na situação de reformados, com idades mais avançadas (65 ou mais anos), com níveis de escolaridade mais baixos (até ao 1º ciclo do ensino básico), a viver sozinhos e os residentes na região Interior Norte, apresentam uma maior propensão para utilizarem a TDT de forma exclusiva”.

Para além de ter vencido o concurso para o serviço de televisão digital de canais gratuitos, a PT, na altura controlada pelo Estado, por via de ações especiais, ganhou um segundo concurso que previa a implementação de um serviço de televisão digital paga. Desistiu de implantar o serviço e terá, assim, impedido a entrada de um concorrente no mercado de televisão por subscrição em Portugal.

Nem só de TDT se fez esta entrevista. Os hábitos de consumo de entretenimento, cultura e informação estão a mudar e a linearidade da emissão televisiva tradicional tem os dias contados – cenário com que Sérgio concorda. Reed Hastings, diretor executivo da plataforma de streaming Netflix falava assim da emissão televisiva em 2014: “É como o cavalo – foi bom até termos o carro”. E acrescentava: “A era das transmissões televisivas vai durar, provavelmente, até 2030”. A televisão terá futuro?

Fotografia: Chris Tengi/Flickr

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